11.01.2013

olhar para ontem (e olha que hoje também já passou)

"Não vale a pena falarmos, para quê, quanto mais falamos mais a gente se magoa um ao outro, fomo-nos distanciando tanto com o tempo, sinceramente nunca imaginei que isto acontecesse, não era assim ao princípio mas nunca é assim ao princípio, as coisas começam a correr mal devagarinho, não damos conta e nisto, de repente, tão longe um do outro, linguagens diferentes, falta de paciência, silêncios que magoam, frases a que não se responde, uma irritação surda, uma impaciência que se tenta disfarçar sem a conseguir disfarçar totalmente, um desconforto mudo mas presente, cada vez mais presente, uma espécie de enjoo, uma espécie de desgosto, o que faço aqui, o que fazes aqui, qual o motivo de continuarmos juntos se não faz sentido, qual o motivo de teimarmos ainda? Se ao menos houvesse alguma coisa que pudéssemos tentar, tu e eu, sentarmo-nos os dois no mesmo sofá, nem que não conversássemos, sentarmo-nos apenas, um ao lado do outro, tu a veres televisão, por exemplo, há aquela novela brasileira que gostas, e eu a olhar para ontem, sempre foi a minha especialidade, olhar para ontem, e permanecermos assim uma hora ou duas, em paz, pode ser que sejamos capazes de encontrar alguma paz, o que é que achas, não estou muito seguro disso mas sei lá, existem surpresas, voltarmos a habituar-nos um ao outro, devagarinho, e tirar prazer disso, pelo menos algum, ainda que pequeno, prazer disso ou, pelo menos, uma ausência de desprazer, o que já não seria mau, pergunto-me se ainda gostamos um do outro e, sinceramente, não conheço a resposta, penso que não, penso que sim, penso que um bocadinho, lá ao fundo, sob o tédio, o ressentimento, o cansaço, porque tanto tédio, tanto ressentimento, tanto cansaço, se mudasses de penteado, se comprasses uns vestidos novos, se usasses saltos mais altos, se me surpreendesses, tornámo-nos tão quotidianos, meu Deus, tão monótonos, não dizes nenhuma coisa que me interesse, não digo nenhuma coisa que te interesse e não é possível não dizermos nunca seja o que for que não interesse o outro havendo pessoas que nos acham divertidos, cultos, se calhar fascinantes, o Carlos, por exemplo, acha-te fascinante, o cretino

- A Amélia é fascinante

aquela tua amiga das saias curtas considera-me o máximo que bem lhe percebo nos olhos, fica de cigarro apagado, feita estátua, a mirar-me e não seria idiota tu inclinares-te para o Carlos e eu para a tua amiga, bastava passarem uns meses para nos fartarmos deles, tanto fascínio e tanta estátua cansam, e daí, quem sabe, não, deixemo-nos de fantasias, tanto fascínio e tanta estátua cansam mesmo, olhemos as coisas de frente, sem infantilidades, cansam mesmo, a questão importante, quer dizer, a única questão realmente importante, é saber se nos cansámos um do outro, do Carlos e da tua amiga podemos, ou não, ocupar-nos mais tarde, no que me diz respeito é não, no que te diz respeito suponho que também, e se a gente voltasse, ou antes, se a gente tentasse voltar a namorar, não sei se sou capaz, não sabes se és capaz, calculo eu, mas o que se perde em tentar, um namoro tímido, lento, envergonhado ao princípio mas que vai crescendo, crescendo, ainda não somos velhos, ainda não desistimos de ser felizes, pois não, o que te parece sermos felizes um com o outro, um beijo aqui, um beijo ali, uma palmadinha no rabo que, se calhar, excita, uma ida ao cinema, um fim de semana fora, num hotel qualquer perto do mar, se não for muito caro podemos, ouvir as ondas no escuro, da cama, enquanto nós, não faças essa cara, enquanto nós tal e coiso, há quantos meses nós não tal e coiso, nós não nada, tu de camisa de dormir transparente, eu, para variar, sem peúgas, se me permites uma confissão, perdoa ser atrevido, acho, como exprimir-me, acho que, não leves a mal, acho que continuo a, palavra de honra, amar-te, isto é a sério, não é da boca para fora, não é assim no ar, acho que continuo a amar-te e, desculpa a presunção, atrevo-me a pensar que continuas a amar-me, se estiver enganado não hesites em dizer que eu aguento, no ponto em que as coisas estão aguento tudo, mesmo esse telefone a tocar agora que não convinha nada que tocasse e tu

- Carlos

sem ouvires o que eu digo, tu, de olhos fechados
- Carlos

tu a sorrires sem ser para mim

- Quando?

tu

- Este fim de semana acho que posso, sim

tu

- Um hotel em Madrid adorava

tu

- O meu marido?

tu

- Há séculos que esse deixou de contar

tu

- A que horas?

tu

- Estou pronta às três

tu

- Buzina da rua que eu desço

tu

- Agora não posso falar muito

tu

- Às três horas tenho a mala à porta

e, se às três horas tens a mala à porta, talvez me possas fazer o favor de deixar escrito aí, num papel, o número da tua amiga das saias curtas que, de certeza, há-de gostar de acordar comigo em Barcelona.


de António Lobo Antunes, 



Lembro-me de ler esta crónica há umas semanas e lembro-me de ter olhado para ontem, entretanto esqueci-me dela, como me tenho esquecido de tantas outras coisas que li e ouvi. Perdoem-me, os tempos estão medonhos.
Valha-nos os amigos bonitos que além de nos relembrarem das coisas bonitas, escrevem cartas maravilhosas, estas, as cartas a paris.






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4 comentários:

  1. A crónica está fabulosa. Demasiado realista, talvez. Um beijinho. Adorei.

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  2. Identifico-me bastante com as primeira frases do texto em relação a um amigo... que sentimentos tão difíceis e tristes...

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    1. Todos olhamos para ontem, algum dia todos vamos olhar para ontem. Um beijinho!

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O meu nome não é Rita Laranja. E gosto de tirar fotografias. amidnightinbuenosaires@gmail.com